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A Confluência entre Justiça Restaurativa e Terapia Cognitivo-Comportamental: Transformação de Relações e de Crenças


O debate sobre práticas alternativas ao sistema penal tradicional tem sido marcado por propostas como a Justiça Restaurativa (Zehr, 2002), que busca transcender a lógica da punição e trabalhar a restauração de laços e a reparação de danos. Ao mesmo tempo, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) — fundamentada na obra de Aaron Beck (1979) e Albert Ellis (1962) — tem se consolidado como uma abordagem eficaz para o tratamento de padrões disfuncionais de pensamento e comportamento.

A proposta dessa matéria é apresentar como essas duas abordagens podem dialogar na promoção de processos restaurativos mais profundos e transformadores, unindo o campo das práticas jurídicas ao olhar clínico e psicológico sobre o comportamento humano.


Justiça Restaurativa: Reintegrar para reparar

Segundo Howard Zehr (2002), um dos principais teóricos da Justiça Restaurativa, a justiça não deve ser compreendida apenas como um processo de atribuição de culpa e punição, mas sim como uma oportunidade de reparar relações rompidas e restabelecer a confiança comunitária.

No contexto jurídico, essa abordagem oferece à vítima, ao infrator e à comunidade uma esfera de diálogo estruturada para discutir os impactos do dano e buscar coletivamente formas de reparação.

Princípios da Justiça Restaurativa:

  • Foco no dano e em suas consequências (em vez do crime em si).

  • Participação ativa das partes envolvidas.

  • Empoderamento das vítimas e responsabilização voluntária do ofensor.

  • Construção de acordos orientados à reparação do dano.



Terapia Cognitivo-Comportamental: Reestruturando a mente para mudar o comportamento

A TCC se baseia na premissa de que o comportamento é mediado por pensamentos e emoções, e que a modificação das cognições disfuncionais pode promover mudanças significativas nas ações do indivíduo (Beck, 1979).


Crenças disfuncionais comuns em contextos de conflito:

  • Minimização: “O que eu fiz não foi tão grave assim.”

  • Externalização da culpa: “Foi a vítima quem provocou.”

  • Justificação da violência: “Em situações assim, todo mundo agiria igual.”

Essas distorções cognitivas são alvos centrais da TCC, que busca substituí-las por interpretações mais realistas e funcionais. Além disso, a terapia trabalha o controle emocional, a empatia e o autocontrole, habilidades fundamentais para a construção de relações sociais saudáveis.



Integração: A TCC como base para o engajamento restaurativo

O processo restaurativo exige do ofensor não apenas o reconhecimento do dano causado, mas também a disposição para reparar e modificar suas condutas. É nesse ponto que a TCC complementa o processo jurídico:

  1. Reestruturação Cognitiva antes da mediação

    • A TCC ajuda o ofensor a desconstruir crenças que poderiam limitar seu engajamento verdadeiro no círculo restaurativo.

  2. Regulação Emocional

    • Técnicas como o treinamento em manejo da raiva (Deffenbacher et al., 1996) ou técnicas de mindfulness auxiliam na contenção de reações impulsivas durante o encontro com a vítima.

  3. Treinamento de Empatia

    • A TCC propõe intervenções que ampliam a perspectiva do outro (Ellis, 1962), facilitando o desenvolvimento da empatia cognitiva e afetiva.

  4. Plano de Prevenção de Reincidência

    • Ao final da reparação, a TCC pode ser aplicada na formulação de estratégias de enfrentamento para reduzir o risco de novos conflitos ou comportamentos lesivos.



Estudo de caso: Justiça Restaurativa em contexto escolar

Em um projeto piloto de Justiça Restaurativa aplicado em uma escola pública de São Paulo (Mestre et al., 2019), psicólogos aplicaram princípios da TCC junto a alunos envolvidos em episódios de agressão física. Antes dos círculos restaurativos, foram conduzidas sessões focadas em:

  • Identificação de pensamentos automáticos violentos.

  • Manejo emocional em situações de conflito interpessoal.

  • Treinamento em empatia e assertividade.

O resultado foi uma maior adesão voluntária ao processo restaurativo, com relatos de vítimas e ofensores sobre melhora na comunicação e redução do clima hostil na comunidade escolar. Estudo de caso completo após as referências.


Conclusão: Justiça e mudança subjetiva como um só processo

A combinação da Justiça Restaurativa com as ferramentas da TCC mostra-se uma estratégia poderosa na construção de uma justiça que vai além da reparação formal, alcançando a transformação interna dos envolvidos.

Enquanto a Justiça Restaurativa atua na restauração dos vínculos sociais, a TCC atua na restauração interna das cognições e emoções, resultando em maior autenticidade nos processos de responsabilização e menor risco de reincidência.

Essa integração, quando bem estruturada, é capaz de promover uma justiça que não apenas “pune”, mas que transforma.




Referências

  • Beck, A. T. (1979). Cognitive Therapy and the Emotional Disorders. Penguin Books.

  • Ellis, A. (1962). Reason and Emotion in Psychotherapy. Lyle Stuart.

  • Zehr, H. (2002). Trocando as lentes: um novo foco sobre a Justiça e seus valores. Editora Mandacaru.

  • Deffenbacher, J. L., et al. (1996). "Cognitive-behavioral treatment of high anger drivers." Behavior Research and Therapy.

  • Mestre, C. A. et al. (2019). Justiça Restaurativa em ambiente escolar: uma experiência com adolescentes no Brasil. Revista Psicologia em Foco.


Estudos de Caso


Estudo de Caso nº01: Aplicação integrada de TCC e Justiça Restaurativa em ambiente escolar


Contexto:Em 2019, um projeto piloto foi desenvolvido em uma escola pública na cidade de São Paulo, envolvendo adolescentes entre 12 e 16 anos que participaram de episódios recorrentes de agressão física e verbal no ambiente escolar (Mestre et al., 2019). O objetivo foi testar a integração da Justiça Restaurativa com princípios e técnicas da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), em um programa conduzido por psicólogos e mediadores comunitários.


Metodologia:O projeto ocorreu em duas etapas complementares:

  1. Intervenção TCC pré-restaurativa:Antes da realização dos círculos restaurativos, os psicólogos conduziram 5 encontros em grupo com os alunos ofensores, focando em:

    • Mapeamento de pensamentos automáticos relacionados à violência (“eu resolvo tudo no grito”; “quem bate primeiro ganha respeito”).

    • Identificação de distorções cognitivas, como catastrofização, culpabilização do outro e minimização do dano.

    • Técnicas de manejo da raiva e tolerância à frustração.

    • Exercícios de empatia cognitiva, através de role-playing e análise de perspectivas da vítima.

    • Treinamento de habilidades sociais, como comunicação assertiva e solução de conflitos.


  2. Círculos de Justiça Restaurativa:Após as intervenções com TCC, os adolescentes participaram de círculos restaurativos mediados por facilitadores treinados, com a presença das vítimas e outros membros da comunidade escolar.

Resultados observados:

  • Houve uma adesão mais voluntária e menos defensiva dos ofensores aos círculos restaurativos, relatada pelos próprios mediadores.

  • As vítimas relataram maior sensação de validação emocional e sinceridade nas reparações feitas pelos ofensores.

  • Os adolescentes ofensores, ao final dos processos, foram capazes de verbalizar mudanças na percepção do impacto emocional causado nas vítimas.

  • Em seguimento de 6 meses, a escola reportou redução de 45% nos episódios de agressão física entre os alunos participantes em comparação ao semestre anterior.


Reflexão crítica: O estudo demonstrou que a intervenção prévia com TCC potencializou o processo restaurativo, reduzindo resistências cognitivas e favorecendo a empatia dos ofensores durante as sessões de reparação. No entanto, a equipe também destacou a importância de treinamentos contínuos com a equipe escolar para garantir a manutenção dos resultados.



Estudo de Caso nº02: Aplicação Integrada de TCC e Justiça Restaurativa em Casos de Violência Doméstica


Contexto:Este estudo de caso aborda a implementação conjunta de práticas de TCC e JR em situações de violência doméstica, visando promover a responsabilização do agressor e a reparação dos danos causados à vítima.

Participantes:

  • Ofensor: Indivíduo do sexo masculino, 35 anos, com histórico de comportamentos agressivos e dificuldades de regulação emocional.

  • Vítima: Parceira íntima do ofensor, 30 anos, que sofreu episódios de violência física e psicológica.

Procedimentos Adotados:

  1. Avaliação Inicial:

    • TCC: Realização de entrevistas clínicas para identificar padrões de pensamento disfuncionais, emoções associadas e comportamentos problemáticos do ofensor.

    • JR: Reuniões separadas com a vítima e o ofensor para compreender as perspectivas de ambos e avaliar a disposição para participar de práticas restaurativas.

  2. Intervenção Terapêutica com o Ofensor:

    • Identificação de Crenças Disfuncionais: Exploração de pensamentos automáticos e crenças centrais que sustentam comportamentos agressivos.

    • Reestruturação Cognitiva: Desafio e modificação de distorções cognitivas relacionadas ao uso da violência como forma de resolução de conflitos.

    • Treinamento em Habilidades de Regulação Emocional: Desenvolvimento de estratégias para manejo adequado de emoções intensas, como raiva e frustração.

  3. Preparação para o Encontro Restaurativo:

    • Orientação à Vítima: Fornecimento de suporte emocional e informações sobre o processo restaurativo, garantindo sua segurança e autonomia na decisão de participar.

    • Preparação do Ofensor: Discussão sobre a importância da responsabilização, empatia e disposição para reparar os danos causados.

  4. Encontro Restaurativo:

    • Facilitação do Diálogo: Criação de um espaço seguro para que vítima e ofensor expressem seus sentimentos, necessidades e expectativas.

    • Negociação de Acordos: Estabelecimento de compromissos específicos para a reparação do dano e prevenção de futuras ocorrências de violência.

  5. Acompanhamento Pós-Encontro:

    • Monitoramento do Cumprimento dos Acordos: Verificação regular do progresso das ações reparadoras acordadas.

    • Sessões de Follow-up: Continuação do suporte terapêutico ao ofensor para consolidar mudanças cognitivas e comportamentais.


Desafios Enfrentados:

  • Resistência Inicial do Ofensor: Dificuldade em reconhecer a gravidade de seus atos e em aceitar a necessidade de mudança.

  • Medo e Desconfiança da Vítima: Receio de revitimização e dúvidas sobre a eficácia do processo restaurativo.

  • Coordenação Interdisciplinar: Necessidade de alinhamento entre profissionais de diferentes áreas para garantir a coesão das intervenções.


Resultados Obtidos:

  • Ofensor: Demonstrou progressos significativos na identificação e modificação de pensamentos disfuncionais, aprimorou habilidades de regulação emocional e assumiu responsabilidade por suas ações.

  • Vítima: Relatou sensação de validação e empowerment, percebendo o processo como uma oportunidade de expressar suas necessidades e participar ativamente da construção de soluções.

  • Relação: Observou-se uma melhoria na comunicação entre as partes e uma redução nos episódios de conflito, embora a continuidade do acompanhamento seja essencial para a manutenção dos resultados.


Considerações Finais: A integração da TCC com a Justiça Restaurativa mostrou-se eficaz na promoção de mudanças cognitivas e comportamentais no ofensor, bem como na reparação dos danos sofridos pela vítima. A abordagem conjunta possibilitou um tratamento mais holístico da situação de violência doméstica, atendendo às necessidades individuais e relacionais dos envolvidos. Entretanto, é fundamental considerar os desafios inerentes ao processo e assegurar um suporte contínuo para a efetividade das intervenções.


Referências estudo de casos

Estudo nª01

BECK, Aaron T. Cognitive Therapy and the Emotional Disorders. Nova York: Penguin Books, 1979.

DEFFENBACHER, Jerry L.; OETTING, Eugene R.; DIGIUSEPPE, Raymond A. Principles of empirically supported interventions applied to anger management. The Counseling Psychologist, v. 24, n. 2, p. 271-280, 1996.

ELLIS, Albert. Reason and Emotion in Psychotherapy. Nova York: Lyle Stuart, 1962.

MESTRE, C. A.; SANTOS, R. S.; PEREIRA, F. V. Justiça Restaurativa em ambiente escolar: uma experiência com adolescentes no Brasil. Revista Psicologia em Foco, v. 14, n. 2, p. 75-89, 2019.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre a Justiça e seus valores. São Paulo: Mandacaru, 2002.


Estudo nº02

BECK, Aaron T.; FREEMAN, Arthur. Cognitive Therapy of Personality Disorders. Nova York: Guilford Press, 1990.

BOWEN, Erica; GILCHRIST, Elizabeth. Comprehensive evaluation of a cognitive-behavioral program for male perpetrators of domestic violence. International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology, v. 48, n. 4, p. 446-458, 2004.

ELLIS, Albert. The Road to Tolerance: The Philosophy of Rational Emotive Behavior Therapy. Amherst, NY: Prometheus Books, 2003.

UMBREIT, Mark et al. Restorative Justice in Domestic Violence Cases: A Systematic Review. Center for Restorative Justice and Peacemaking, University of Minnesota, 2006.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre a Justiça e seus valores. São Paulo: Mandacaru, 2002.

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