A Confluência entre Justiça Restaurativa e Terapia Cognitivo-Comportamental: Transformação de Relações e de Crenças
- Iago David Rc
- 26 de abr.
- 7 min de leitura
O debate sobre práticas alternativas ao sistema penal tradicional tem sido marcado por propostas como a Justiça Restaurativa (Zehr, 2002), que busca transcender a lógica da punição e trabalhar a restauração de laços e a reparação de danos. Ao mesmo tempo, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) — fundamentada na obra de Aaron Beck (1979) e Albert Ellis (1962) — tem se consolidado como uma abordagem eficaz para o tratamento de padrões disfuncionais de pensamento e comportamento.
A proposta dessa matéria é apresentar como essas duas abordagens podem dialogar na promoção de processos restaurativos mais profundos e transformadores, unindo o campo das práticas jurídicas ao olhar clínico e psicológico sobre o comportamento humano.
Justiça Restaurativa: Reintegrar para reparar
Segundo Howard Zehr (2002), um dos principais teóricos da Justiça Restaurativa, a justiça não deve ser compreendida apenas como um processo de atribuição de culpa e punição, mas sim como uma oportunidade de reparar relações rompidas e restabelecer a confiança comunitária.
No contexto jurídico, essa abordagem oferece à vítima, ao infrator e à comunidade uma esfera de diálogo estruturada para discutir os impactos do dano e buscar coletivamente formas de reparação.
Princípios da Justiça Restaurativa:
Foco no dano e em suas consequências (em vez do crime em si).
Participação ativa das partes envolvidas.
Empoderamento das vítimas e responsabilização voluntária do ofensor.
Construção de acordos orientados à reparação do dano.
Terapia Cognitivo-Comportamental: Reestruturando a mente para mudar o comportamento
A TCC se baseia na premissa de que o comportamento é mediado por pensamentos e emoções, e que a modificação das cognições disfuncionais pode promover mudanças significativas nas ações do indivíduo (Beck, 1979).
Crenças disfuncionais comuns em contextos de conflito:
Minimização: “O que eu fiz não foi tão grave assim.”
Externalização da culpa: “Foi a vítima quem provocou.”
Justificação da violência: “Em situações assim, todo mundo agiria igual.”
Essas distorções cognitivas são alvos centrais da TCC, que busca substituí-las por interpretações mais realistas e funcionais. Além disso, a terapia trabalha o controle emocional, a empatia e o autocontrole, habilidades fundamentais para a construção de relações sociais saudáveis.
Integração: A TCC como base para o engajamento restaurativo
O processo restaurativo exige do ofensor não apenas o reconhecimento do dano causado, mas também a disposição para reparar e modificar suas condutas. É nesse ponto que a TCC complementa o processo jurídico:
Reestruturação Cognitiva antes da mediação
A TCC ajuda o ofensor a desconstruir crenças que poderiam limitar seu engajamento verdadeiro no círculo restaurativo.
Regulação Emocional
Técnicas como o treinamento em manejo da raiva (Deffenbacher et al., 1996) ou técnicas de mindfulness auxiliam na contenção de reações impulsivas durante o encontro com a vítima.
Treinamento de Empatia
A TCC propõe intervenções que ampliam a perspectiva do outro (Ellis, 1962), facilitando o desenvolvimento da empatia cognitiva e afetiva.
Plano de Prevenção de Reincidência
Ao final da reparação, a TCC pode ser aplicada na formulação de estratégias de enfrentamento para reduzir o risco de novos conflitos ou comportamentos lesivos.
Estudo de caso: Justiça Restaurativa em contexto escolar
Em um projeto piloto de Justiça Restaurativa aplicado em uma escola pública de São Paulo (Mestre et al., 2019), psicólogos aplicaram princípios da TCC junto a alunos envolvidos em episódios de agressão física. Antes dos círculos restaurativos, foram conduzidas sessões focadas em:
Identificação de pensamentos automáticos violentos.
Manejo emocional em situações de conflito interpessoal.
Treinamento em empatia e assertividade.
O resultado foi uma maior adesão voluntária ao processo restaurativo, com relatos de vítimas e ofensores sobre melhora na comunicação e redução do clima hostil na comunidade escolar. Estudo de caso completo após as referências.
Conclusão: Justiça e mudança subjetiva como um só processo
A combinação da Justiça Restaurativa com as ferramentas da TCC mostra-se uma estratégia poderosa na construção de uma justiça que vai além da reparação formal, alcançando a transformação interna dos envolvidos.
Enquanto a Justiça Restaurativa atua na restauração dos vínculos sociais, a TCC atua na restauração interna das cognições e emoções, resultando em maior autenticidade nos processos de responsabilização e menor risco de reincidência.
Essa integração, quando bem estruturada, é capaz de promover uma justiça que não apenas “pune”, mas que transforma.
Referências
Beck, A. T. (1979). Cognitive Therapy and the Emotional Disorders. Penguin Books.
Ellis, A. (1962). Reason and Emotion in Psychotherapy. Lyle Stuart.
Zehr, H. (2002). Trocando as lentes: um novo foco sobre a Justiça e seus valores. Editora Mandacaru.
Deffenbacher, J. L., et al. (1996). "Cognitive-behavioral treatment of high anger drivers." Behavior Research and Therapy.
Mestre, C. A. et al. (2019). Justiça Restaurativa em ambiente escolar: uma experiência com adolescentes no Brasil. Revista Psicologia em Foco.
Estudos de Caso
Estudo de Caso nº01: Aplicação integrada de TCC e Justiça Restaurativa em ambiente escolar
Contexto:Em 2019, um projeto piloto foi desenvolvido em uma escola pública na cidade de São Paulo, envolvendo adolescentes entre 12 e 16 anos que participaram de episódios recorrentes de agressão física e verbal no ambiente escolar (Mestre et al., 2019). O objetivo foi testar a integração da Justiça Restaurativa com princípios e técnicas da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), em um programa conduzido por psicólogos e mediadores comunitários.
Metodologia:O projeto ocorreu em duas etapas complementares:
Intervenção TCC pré-restaurativa:Antes da realização dos círculos restaurativos, os psicólogos conduziram 5 encontros em grupo com os alunos ofensores, focando em:
Mapeamento de pensamentos automáticos relacionados à violência (“eu resolvo tudo no grito”; “quem bate primeiro ganha respeito”).
Identificação de distorções cognitivas, como catastrofização, culpabilização do outro e minimização do dano.
Técnicas de manejo da raiva e tolerância à frustração.
Exercícios de empatia cognitiva, através de role-playing e análise de perspectivas da vítima.
Treinamento de habilidades sociais, como comunicação assertiva e solução de conflitos.
Círculos de Justiça Restaurativa:Após as intervenções com TCC, os adolescentes participaram de círculos restaurativos mediados por facilitadores treinados, com a presença das vítimas e outros membros da comunidade escolar.
Resultados observados:
Houve uma adesão mais voluntária e menos defensiva dos ofensores aos círculos restaurativos, relatada pelos próprios mediadores.
As vítimas relataram maior sensação de validação emocional e sinceridade nas reparações feitas pelos ofensores.
Os adolescentes ofensores, ao final dos processos, foram capazes de verbalizar mudanças na percepção do impacto emocional causado nas vítimas.
Em seguimento de 6 meses, a escola reportou redução de 45% nos episódios de agressão física entre os alunos participantes em comparação ao semestre anterior.
Reflexão crítica: O estudo demonstrou que a intervenção prévia com TCC potencializou o processo restaurativo, reduzindo resistências cognitivas e favorecendo a empatia dos ofensores durante as sessões de reparação. No entanto, a equipe também destacou a importância de treinamentos contínuos com a equipe escolar para garantir a manutenção dos resultados.
Estudo de Caso nº02: Aplicação Integrada de TCC e Justiça Restaurativa em Casos de Violência Doméstica
Contexto:Este estudo de caso aborda a implementação conjunta de práticas de TCC e JR em situações de violência doméstica, visando promover a responsabilização do agressor e a reparação dos danos causados à vítima.
Participantes:
Ofensor: Indivíduo do sexo masculino, 35 anos, com histórico de comportamentos agressivos e dificuldades de regulação emocional.
Vítima: Parceira íntima do ofensor, 30 anos, que sofreu episódios de violência física e psicológica.
Procedimentos Adotados:
Avaliação Inicial:
TCC: Realização de entrevistas clínicas para identificar padrões de pensamento disfuncionais, emoções associadas e comportamentos problemáticos do ofensor.
JR: Reuniões separadas com a vítima e o ofensor para compreender as perspectivas de ambos e avaliar a disposição para participar de práticas restaurativas.
Intervenção Terapêutica com o Ofensor:
Identificação de Crenças Disfuncionais: Exploração de pensamentos automáticos e crenças centrais que sustentam comportamentos agressivos.
Reestruturação Cognitiva: Desafio e modificação de distorções cognitivas relacionadas ao uso da violência como forma de resolução de conflitos.
Treinamento em Habilidades de Regulação Emocional: Desenvolvimento de estratégias para manejo adequado de emoções intensas, como raiva e frustração.
Preparação para o Encontro Restaurativo:
Orientação à Vítima: Fornecimento de suporte emocional e informações sobre o processo restaurativo, garantindo sua segurança e autonomia na decisão de participar.
Preparação do Ofensor: Discussão sobre a importância da responsabilização, empatia e disposição para reparar os danos causados.
Encontro Restaurativo:
Facilitação do Diálogo: Criação de um espaço seguro para que vítima e ofensor expressem seus sentimentos, necessidades e expectativas.
Negociação de Acordos: Estabelecimento de compromissos específicos para a reparação do dano e prevenção de futuras ocorrências de violência.
Acompanhamento Pós-Encontro:
Monitoramento do Cumprimento dos Acordos: Verificação regular do progresso das ações reparadoras acordadas.
Sessões de Follow-up: Continuação do suporte terapêutico ao ofensor para consolidar mudanças cognitivas e comportamentais.
Desafios Enfrentados:
Resistência Inicial do Ofensor: Dificuldade em reconhecer a gravidade de seus atos e em aceitar a necessidade de mudança.
Medo e Desconfiança da Vítima: Receio de revitimização e dúvidas sobre a eficácia do processo restaurativo.
Coordenação Interdisciplinar: Necessidade de alinhamento entre profissionais de diferentes áreas para garantir a coesão das intervenções.
Resultados Obtidos:
Ofensor: Demonstrou progressos significativos na identificação e modificação de pensamentos disfuncionais, aprimorou habilidades de regulação emocional e assumiu responsabilidade por suas ações.
Vítima: Relatou sensação de validação e empowerment, percebendo o processo como uma oportunidade de expressar suas necessidades e participar ativamente da construção de soluções.
Relação: Observou-se uma melhoria na comunicação entre as partes e uma redução nos episódios de conflito, embora a continuidade do acompanhamento seja essencial para a manutenção dos resultados.
Considerações Finais: A integração da TCC com a Justiça Restaurativa mostrou-se eficaz na promoção de mudanças cognitivas e comportamentais no ofensor, bem como na reparação dos danos sofridos pela vítima. A abordagem conjunta possibilitou um tratamento mais holístico da situação de violência doméstica, atendendo às necessidades individuais e relacionais dos envolvidos. Entretanto, é fundamental considerar os desafios inerentes ao processo e assegurar um suporte contínuo para a efetividade das intervenções.
Referências estudo de casos
Estudo nª01
BECK, Aaron T. Cognitive Therapy and the Emotional Disorders. Nova York: Penguin Books, 1979.
DEFFENBACHER, Jerry L.; OETTING, Eugene R.; DIGIUSEPPE, Raymond A. Principles of empirically supported interventions applied to anger management. The Counseling Psychologist, v. 24, n. 2, p. 271-280, 1996.
ELLIS, Albert. Reason and Emotion in Psychotherapy. Nova York: Lyle Stuart, 1962.
MESTRE, C. A.; SANTOS, R. S.; PEREIRA, F. V. Justiça Restaurativa em ambiente escolar: uma experiência com adolescentes no Brasil. Revista Psicologia em Foco, v. 14, n. 2, p. 75-89, 2019.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre a Justiça e seus valores. São Paulo: Mandacaru, 2002.
Estudo nº02
BECK, Aaron T.; FREEMAN, Arthur. Cognitive Therapy of Personality Disorders. Nova York: Guilford Press, 1990.
BOWEN, Erica; GILCHRIST, Elizabeth. Comprehensive evaluation of a cognitive-behavioral program for male perpetrators of domestic violence. International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology, v. 48, n. 4, p. 446-458, 2004.
ELLIS, Albert. The Road to Tolerance: The Philosophy of Rational Emotive Behavior Therapy. Amherst, NY: Prometheus Books, 2003.
UMBREIT, Mark et al. Restorative Justice in Domestic Violence Cases: A Systematic Review. Center for Restorative Justice and Peacemaking, University of Minnesota, 2006.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre a Justiça e seus valores. São Paulo: Mandacaru, 2002.



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