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TDAH ontem, hoje e amanhã: o impacto das telas e a evolução da atenção na era digital

Atualizado: 2 de abr.



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O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) sempre existiu, e isso é fato — mas não da mesma forma. No modo como ele se manifesta, é compreendido, diagnosticado e tratado tem sido profundamente moldado pelas diversas mudanças culturais, tecnológicas e educacionais ao longo das últimas décadas. Entre os fatores mais discutidos na atualidade, destaca-se o polêmico uso crescente de telas digitais e sua relação com o cérebro neurodivergente.

A forma como o ambiente interage com as funções executivas, a regulação emocional e os mecanismos de recompensa cerebral exige uma análise que vá além da patologização ou da defesa cega das tecnologias. Aqui enquanto roteiro de uma live, tive uma pequena preteção de propor uma reflexão crítica e contextualizada, traçando uma linha do tempo entre o TDAH do passado, o TDAH no presente e o TDAH que conjecturamos no futuro, especialmente à luz da hiperconectividade.


TDAH Ontem: a "atenção" em tempos analógicos

Nas décadas anteriores à revolução digital — especialmente entre os anos 80 e 90 — o TDAH era frequentemente subdiagnosticado, confundido com "mau comportamento", "falta de educação" ou "imaturidade". Crianças inquietas e dispersas eram punidas ou ignoradas, e pouco se compreendia sobre os circuitos neurobiológicos da atenção. A televisão, principal tela da época, tinha uma lógica de programação fixa, com poucos canais, conteúdos limitados e horários definidos. Isso é um dado primordial para entender a lógica do texto. Okay?

Crescer assistindo à Xuxa ou a programas de auditório em uma TV de tubo envolvia um processo fundamental na época, a "espera".Esperar o programa começar, aceitar intervalos comerciais (sem opção de pular anuncios) e conviver com o tédio. Esse formato impunha regras naturais ao consumo de estímulo, o que exigia da criança uma espécie de tolerância que, mesmo involuntária, era reguladora. O acesso à dopamina era mais esporádico, com reforçadores distribuídos ao longo do tempo.

Esse ambiente favorecia, ainda que indiretamente, o treino da atenção sustentada e da frustração. Mesmo para crianças com TDAH, a lentidão do mundo analógico impunha um ritmo em que o déficit era real, mas menos exacerbado por estímulos externos de alta velocidade.


TDAH Hoje: dopamina sob demanda

Na era dos smartphones, tablets e conteúdos infinitos, vivemos o fenômeno da dopamina sob demanda. A criança com TDAH, por exemplo, cuja neuroquímica já é marcada por um sistema dopaminérgico hipoativo, encontra no ambiente digital uma fonte inesgotável de reforçadores imediatos — seja nos vídeos curtos do YouTube, nas conquistas instantâneas dos jogos ou na alternância frenética de estímulos nas redes sociais.

Segundo Volkow et al. (2009), essa busca intensa por novidade e recompensa é característica do TDAH e, no contexto atual, é alimentada sem freios. O cérebro passa a associar atenção com recompensa imediata, o que prejudica o desenvolvimento de funções executivas como o controle inibitório, a organização e a memória operacional.

Além disso, como apontam estudos como o de Christakis et al. (2018), a exposição precoce e desregulada a conteúdos digitais pode intensificar sintomas de desatenção e impulsividade. O diagnóstico se torna mais frequente — mas também mais complexo, pois há um risco crescente de confundir os efeitos do uso excessivo de tela com manifestações nucleares do TDAH, levando a superdiagnósticos ou intervenções mal direcionadas.

Por outro lado, estudos como os de Domoff et al. (2020) mostram que nem todo uso de tela é prejudicial. Quando mediado de forma adequada, o ambiente digital pode ser uma ferramenta auxiliar no desenvolvimento de habilidades cognitivas e emocionais, especialmente por meio de aplicativos terapêuticos ou jogos com foco em funções executivas.


TDAH Amanhã: para onde estamos olhando?

Se o passado nos ensina sobre as consequências do desconhecimento e o presente nos desafia com o excesso de estímulo, o futuro nos convida a repensar a forma como compreendemos e intervimos no TDAH. Será necessário adotar uma visão mais ecológica e interdisciplinar, que integre neurociência, educação, tecnologia e cultura.

O conceito de “zona dourada digital”, proposto por Przybylski & Weinstein (2017), sugere que existe um ponto de equilíbrio: uma quantidade moderada e bem gerida de uso digital pode contribuir positivamente para o bem-estar e o funcionamento cognitivo. A chave está na intencionalidade, na qualidade do conteúdo e na capacidade da criança (e dos adultos à sua volta) de se autorregularem.

As intervenções clínicas e educacionais do futuro precisarão ir além da simples proibição ou permissão do uso de telas. Será necessário alfabetizar digitalmente pais, professores e profissionais de saúde, desenvolver ferramentas terapêuticas baseadas em evidência e criar rotinas que favoreçam o fortalecimento da atenção, da tolerância ao tédio e da flexibilidade cognitiva.

Também será fundamental considerar as diferenças individuais, como a presença de comorbidades, fatores ambientais, vulnerabilidades genéticas e contexto familiar. O TDAH do amanhã exigirá um olhar mais sensível, menos generalizante e profundamente humano — capaz de acolher a complexidade da neurodivergência em tempos de conexão extrema.


Chegando em um denominador comum

O TDAH é um transtorno neurodesenvolvimental que dialoga diretamente com o seu tempo. Se antes era abafado por silêncio e disciplina, hoje corre o risco de ser inflado por estímulos ininterruptos e diagnósticos apressados. O uso de telas é parte central dessa discussão, não como vilão ou salvador, mas como elemento modulador da atenção, da emoção e da cognição.

Ao entendermos o TDAH em perspectiva histórica, conseguimos identificar os desafios e oportunidades de cada geração. O que está em jogo não é apenas a gestão do tempo de tela, mas a forma como ensinamos o cérebro a prestar atenção, a esperar, a se frustrar — e, sobretudo, a se autorregular em um mundo que não para.


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🔍 Dica de leitura:

  • Christakis, D. (2018) – Pesquisador que discute como o uso precoce de telas afeta o cérebro em desenvolvimento. Leitura obrigatória pra entender a fragmentação da atenção.

  • Volkow, N. et al. (2009) – Estudo clássico sobre o papel da dopamina no TDAH. Explica por que vídeos rápidos parecem acalmar... mas podem estar agravando o problema.



✨ Curiosidades bônus: pra pensar com o cérebro, não com o algoritmo

📍 Plasticidade do ambienteO cérebro se adapta ao que o cerca. Se o ambiente muda rápido demais, a atenção não aprende a parar.O mundo digital também ensina — o problema é o que ele tem ensinado.

📍 Alfabetização digital não é saber usar.É saber escolher. Saber quando parar.É ensinar que não precisamos consumir tudo que aparece — nem tão rápido assim.

📍 Curadoria digital é um novo tipo de afeto.Escolher o que assistir com uma criança é mais do que controlar —é participar, é cuidar da saúde mental dela a longo prazo.

📍 Zona dourada digitalNem muito, nem nada: só o suficiente.É onde a tecnologia vira aliada da aprendizagem e não inimiga da atenção.

📍 Dopamina não é vilã.O problema não é sentir prazer — é só conseguir sentir prazer com o que brilha.E quando o mundo real não brilha tanto, a frustração vem como sintoma.



Referências

  • Christakis, D. A., Ramirez, J. S. B., Ferguson, S. M., Ravinder, S., & Ramirez, J. M. (2018). How Early Media Exposure May Affect Cognitive Function: A Review of Results From Observational and Experimental Studies. Pediatrics, 142(2), e20171893.

  • Domoff, S. E., Radesky, J. S., Harrison, K., et al. (2020). Media and Young Minds in the Digital Age. Pediatrics, 145(Supplement 2), S157–S161.

  • Przybylski, A. K., & Weinstein, N. (2017). A Large-Scale Test of the Goldilocks Hypothesis: Quantifying the Relations Between Digital-Screen Use and the Mental Well-Being of Adolescents. Psychological Science, 28(2), 204–215.

  • Volkow, N. D., Wang, G. J., Kollins, S. H., et al. (2009). Evaluating Dopamine Reward Pathway in ADHD: Clinical Implications. JAMA, 302(10), 1084–1091.

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